Educadora, doutora em Letras na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela Universidade de São Paulo, especialista em Literatura Brasileira e Literatura Infantil e Juvenil são algumas das informações que constam no currículo da professora uberabense Vânia Maria Resende. Autora de obras como Literatura infantil e juvenil – vivências de leitura e expressão criadora, O menino na literatura brasileira; organizadora, pela Secretaria Municipal de Educação de Uberaba, de Lendo e recriando o verde; coorganizadora de Crônicas colegiais – quantas saudades do colégio vou levar, além de artigos e capítulos em publicações da área, Vânia Resende é grande incentivadora da literatura nacional, sobretudo da educação e cultura no país, com a difusão do livro, da literatura brasileira adulta, infantil e juvenil e da leitura.
São vários os prêmios recebidos por todo o território nacional durante o percurso de mais de 30 anos de batalhas, desde que iniciou a carreira como professora de Português e Literatura nos ensinos Fundamental, Médio e Superior. Atualmente, integra o grupo de especialistas convidados pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, como ministrante de cursos na área de Literatura, Leitura e Formação de Leitores, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, e de promotores de Leitura em várias cidades brasileiras, onde tem sido implantado o Projeto “Bibliotecas Comunitárias – Ler é Preciso”, do Instituto Ecofuturo.
Na entrevista especial de hoje, o Jornal da Manhã traz um pouco da história da idealizadora, coordenadora de projetos de incentivo à leitura fora da escola e das exposições de conteúdo em sala de aula, inclusive como voluntária do “Leia e Passe Adiante”, implantado em 2000 em Uberaba e região, para o qual doa livros e materiais impressos e de multimídia, anualmente.
Jornal da Manhã – Quem é Vânia Maria Resende?
Vânia Maria Resende – Vou usar uma expressão do livro Grande Sertão Veredas, em que Guimarães Rosa diz, através do personagem Riobaldo: “O sertão é dentro da gente”. Como tenho enorme identificação com a obra de Guimarães, com o passar do tempo e relendo o livro, entendi isso como achado que remete à minha identificação com essa história e, por isso, me explica por que tenho a alma telúrica, ou seja, tenho ligações com a terra. Nunca deixei Uberaba, sempre morei aqui, estudei fora, indo e voltando. Tenho amor às pessoas, ao lugar e um vínculo com a natureza, porque cada um de nós pode ter identificação metropolitana ou urbana, ou mesmo sertaneja, como é meu caso. Uma ligação com a natureza, com o cotidiano, com as coisas simples e com o interior onde me criei. Tive contato com fazenda, indo passar férias. Minha infância foi telúrica, e não metropolitana. Essa identificação vem da educação, de onde me criei, mas também da minha sensibilidade, daí o meu gosto por Manoel de Barros, Adélia Prado, Cora Coralina e o grande mestre Guimarães Rosa. Não é preciso viajar à Europa para conhecer o mundo, basta ler. Não nego o valor do metropolitano, mas o grande mal, desencadeado principalmente pelas transformações do modelo industrial, é a divisão entre a natureza e a cultura tecnológica, o que gerou os problemas de ordem ecológica que vivemos hoje. A utopia que alimento é mudar a visão do homem como centro da vida e recuperarmos as origens, no sentido de entendermos a importância que a natureza tem como geradora de vida, e não como alvo de submissão humana na exploração materialista desenfreada.
JM – Como foi o seu primeiro contato com a literatura?
VMR – Foi em dois níveis. O da oralidade foi muito importante, já que passa uma fantasia espontânea muito rica. Tive isso no contato com duas pessoas. Uma delas, na zona rural, foi seu Neném, um contador de histórias analfabeto que nos contava aventuras na cozinha da fazenda, e o repertório dele era todo Pedro Malazartes [segundo Câmara Cascudo, “é figura tradicional nos contos populares, como exemplo de burlão invencível, astucioso, cínico, inesgotável de expedientes e de enganos, sem escrúpulos e sem remorsos”]. Iniciei mergulhando fundo nessa ficção, viajando para aventuras que me tiravam da realidade. Também tive um avô brincalhão, que contava histórias fragmentadas, mas tinha herança das histórias ditas de boca em boca. Contava histórias que hoje vejo em livros e percebo a riqueza da oralidade, cada cultura ou contador que conta uma história realiza aquele “cada conto aumenta um ponto” e isso é enriquecedor. Na leitura, propriamente, foi importante no Colégio Nossa Senhora das Dores o contato com coleção que, na época, atingia grandes edições na década de 60, “As mais belas histórias”. Era de uma escritora mineira, Lúcia Casasanta, que fez essa coleção de histórias permeadas pelo fantástico. Tinha até poesias da Cecília Meireles, vida de santos, lendas, histórias do folclore e contos de fadas, que eram recontados. O contato com os quatro livros foi muito importante. Não precisou de um repertório imenso para alimentar minha imaginação e abrir tantas perspectivas ao longo da vida adulta.
JM – Que recordações da infância marcaram sua visão de mundo?
VMR – Tudo do plano da simplicidade [risos], nenhuma sofisticação. Na época da minha infância, viviam-se mais as questões ligadas ao interior das pessoas, porque a sociedade não tinha avançado com tantas ofertas de bens de consumo e por questão de condições econômicas familiares, devido ao número de filhos. Meus pais tiveram seis filhos, quer dizer, dar tudo para todos era muito difícil. Sou grata a essas condições, porque pude guardar profundamente na minha memória relações como as que tive com meu cachorro, com uma boneca que ganhei de meus pais, a convivência ingênua das crianças que, em dia de Natal, saíam de casa levando os presentes para compartilhar com os amiguinhos na rua, ficar na porta conversando ou na cozinha contando casos, com o cheiro do café. A simplicidade foi marcante.
JM – Como a senhora vê o atual método de ensino de literatura nas escolas, em que as crianças, muitas vezes, dão os primeiros passos na leitura com obras de difícil entendimento como Machado de Assis ou Eça de Queiroz, por exemplo, com menos oralidade?
VMR – É uma questão que precisa ser repensada no espaço da educação. A literatura escrita é a ponte mais profunda para o ser humano. Não podemos viver toda a vida no plano da oralidade. Esse é o salto que a escola e a educação sistematizada oferecem ao sujeito leitor para que ele reveja e amplie a sua consciência da realidade, forme valores e referências. Na verdade, existe um passo a passo no amadurecimento do ser leitor. Quanto ao lado pedagógico, é necessário o professor, mediador de leitura e da formação de leitores estar atento a essa questão de ordem metodológica. Ele precisa ser formado para isso e para entender que na escola há dois espaços fundamentais para a formação do leitor: a sala de aula, através da qual todo professor deveria incentivar, e a biblioteca. Pelos fundamentos psicológicos, o educador entende quem é cada criança, seus interesses, sua capacidade linguística. Porque se é dado um livro de Machado de Assis, que não vai ser compreendido, dado o momento de imaturidade do aluno para assimilar essas referências literárias, vai ser realmente um desastre. A metodologia do processo de leitura deve ser orientada também de acordo com a bagagem linguística do leitor e não impositiva.
JM – Que sugestões daria para que professores tornassem o ensino da literatura, e a própria leitura, mais agradável e orientadora na escola?
VMR – Primeiro falta ao professor formador de leitores conhecer o repertório amplo que tem a literatura infantil brasileira. Se as gerações anteriores, como Ana Maria Machado, Jô Soares, grandes intelectuais brasileiros de hoje, foram formados com um grande escritor como Monteiro Lobato, que é o que se tinha de melhor na infância deles, imagine a evolução da produção editorial infantil e juvenil no Brasil até o presente. Faltam, porém, à maioria dos professores conhecimento e acesso a esse vasto e rico universo de obras, do qual ele pode se servir para amadurecer as diversas idades. Tem livro para todo gosto. Essa falta está na formação do professor e ele não tem culpa. Como exigir dele ler com os alunos, se ele próprio possui carências de formação. As heranças culturais no Brasil realmente criaram essa lacuna. É preciso que o professor tenha o hábito de leitura, mas alguns não ultrapassam o livro didático. Por outro lado, falta à escola brasileira estruturar-se sobre parâmetros filosóficos que levem a um pensamento melhor, fornecendo caminhos culturais mais amplos e a literatura faria parte desse caminho, juntamente com pintura, música e as artes em geral, ao invés de só oferecer objetivos que são repetitivos do modelo econômico atual, o de preparar o aluno apenas para a prova do vestibular. Esse modelo trabalha a literatura com a criança, prejudicando a educação da sensibilidade e do espírito crítico.
JM – E qual o papel dos pais na questão do incentivo à leitura?
VMR – A vida de hoje recolocou as pessoas nessa ordem de urgência de tudo, de adquirir bens e status; os pais trabalham o dia todo, ficam cansados e são influenciados pelos valores da sociedade de consumo. Passam a achar que é mais importante dar um tênis ou um celular de última geração do que um livro, atendendo aos apelos da modernidade, enquanto que o livro, a leitura e a convivência com o outro são valores essenciais. Acredito que o importante é a leitura compartilhada, porque também não adianta o pai comprar um lindo livro, se o filho não tem o exemplo da leitura. O que realiza completamente essa influência positiva é ler junto, compartilhar emocionalmente a afetividade, que é tudo na infância.
JM – Entre os adultos a reclamação para a pouca leitura seria o alto valor dos livros, o que dificulta o acesso. Faltam políticas públicas para popularizar o mercado editorial ou de incentivo à leitura?
VMR – Políticas públicas favorecem. O que entraria nessa questão seria, sobretudo, o empenho no funcionamento de excelentes bibliotecas públicas no país. O sujeito, tendo ali no bairro dele um trabalho assíduo dessas bibliotecas – já que não basta o livro estar na prateleira, é preciso mediação da leitura –, vai ler mais e desenvolverá os direitos da cidadania a bens como o livro. Quanto à questão de livros mais baratos, há dois lados. O novo presidente da Fundação Biblioteca Nacional Galeno Amorim quer fazer livros por um preço baixo, como R$ 10. Questiono: será que compensa o achatamento de um livro? Que tipo de livro será esse? Vai voltar o livro de papel jornal com pouca qualidade? Livro é um objeto artístico, tem que ser bonito e de qualidade para se tornar atrativo. Há várias formas de possibilitar o acesso ao livro, como, por exemplo, as bibliotecas comunitárias. Mas essa é uma questão, também, de mentalidade, quando se coloca o livro entre as prioridades de aquisição de bens.
JM – Na Argentina e nos Estados Unidos cada habitante chega a ler cinco livros por ano e na Europa, cerca de oito obras. Segundo o Ministério da Cultura, o brasileiro lê, em média, menos de dois livros por ano. Por que lemos pouco?
VMR – É justamente por conta das heranças culturais e históricas. Qual o peso histórico que o Brasil viveu como país colonizado? Não havia interesse no processo colonizador de que a grande massa fosse leitora. Por um lado, tivemos uma riqueza de oralidade imensa, devido à confluência no processo de colonização de culturas europeias, africanas e americana, que já estava instalada aqui. Os avanços da consciência e o aprofundamento do pensamento humano têm saltos com a leitura da palavra escrita. A nossa colonização não se interessou pela alfabetização da população. Vêem-se ainda hoje inúmeros analfabetos. O país não passou da herança oral ao processo ideal de desenvolvimento da leitura e da escrita, influenciada pela democratização da escola. O número de escolas cresceu, mas a qualidade não foi a desejada, por isso vemos pessoas chegando às universidades analfabetas funcionais. O erro está na falta do processo de leitura de qualidade. Falta ler com aprofundamento crítico, fazer uma leitura com liberdade, seguindo o processo de amadurecimento linguístico e de libertação do pensamento.
JM – Como surgiu a ideia de criar projetos de leitura, como o “Leia e Passe Adiante”, implantado em 2000 em Uberaba e região?
VMR – Sempre realizei atividades além da sala de aula, como o projeto para comemorar Monteiro Lobato na Escola Estadual Quintiliano Jardim, quando dava aula de Português, ainda aluna de Letras. Sempre incentivei os alunos a darem vazão ao processo criativo, tendo a leitura como base. Já no plano universitário, dando aula de Literatura Infantil e Juvenil, tive impulso para fazer projetos de extensão de leitura e escrita criativa. O primeiro projeto, o Concurso Literário Juvenil Vinícius de Morais, fez história em Uberaba. Era um programa de incentivo à leitura e expressão criativa. Foi criada uma minibiblioteca que se implantava nas escolas de 1º a 8º ano, envolvendo os alunos de Letras em estágio. No decorrer dos anos, tive uma livraria especializada por 12 anos, a Menino Maluquinho, onde fazia projetos de cunho social e cultural amplo. Criei, inclusive, várias minibibliotecas, com acervos de 80 a 100 obras em cerca de 12 instituições que atendiam crianças, como Casa do Menino, Lar Espírita, Orfanato Santo Eduardo e o Hospital do Pênfigo. Com o fechamento em 1994, prossegui acreditando nessa linha de trabalho com a literatura e, como fiquei com estoque final de livros, além do meu trabalho remunerado com a literatura, quis atuar como voluntária nesse processo de incentivo à leitura com o projeto Leia e Passe Adiante, doando livros anualmente a vários Núcleos. O Núcleo-polo na Fazu tem rotatividade de quase dois mil livros entre alunos e comunidade. Com o prêmio do Ministério da Cultura que ganhei em 2009, fizemos uma frente itinerante do projeto, que já passou em Delta, está em Conceição das Alagoas e, em julho, vai se deslocar para outra cidade da região. Ele tem mais de 600 livros, mais de 100 gibis e uma parte multimídia, oferecendo um ambiente de leitura com estrutura mobiliária e tecnológica adequada.
JM – O professor é importante ferramenta para a difusão do conhecimento. Embora hoje as crianças já entrem para a escola conhecendo as tecnologias mais que muitos adultos, o computador não substitui o professor. Como a senhora vê os efeitos do uso desse instrumento no hábito de ler, na forma como crianças e adolescentes escrevem e mesmo na aprendizagem da língua e da literatura?
VMR – Vejo que não é bom quando um meio de comunicação novo surge substituindo ou anulando a importância de outro. Toda tecnologia que se conquista é ampliação do nosso repertório. Vejo a internet como instrumento fantástico, mas, se for alienante do sujeito que dela faz uso, não é bom. Se a educação se processa equilibradamente, tudo bem. Se os pais acham que aos quatro anos de idade é melhor um computador que a leitura de um livro, eles são os culpados pela alienação dessa criança. Quando vemos crianças e adolescentes se alienando no computador, será que não foi por influência da educação do lar, por falta de incentivo e amparo à leitura? Há fatores a serem revistos sobre o que está acontecendo nesta educação. Falta iniciação dessa criança no hábito da leitura de poesias e histórias. A internet é um ganho, mas o uso exagerado é pernicioso. Na questão da linguagem, não vejo como alarmante. Há convenções. As abreviações usadas para as conversas na internet não vão mudar a estrutura essencial da língua portuguesa e, se mudarem, é porque a língua é dinâmica.
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